Era uma vez um moleque traquina, levado, teimoso, boca suja e
insuportável a ponto de sua mãe dizer que não o aguentava mais, sabia de coisas
do arco da velha. Seu nome era Joãozinho. Sua mãe era viúva e vivia dos serviços
da rocinha que tocava, dali tirava o sustento para ela e seu filho, era o ano
inteirinho que Deus dava, lidando na roça, tecia algumas redes para os que
precisavam, trançava rédeas de crina, fazia baixeiros e cobertores de lã
também. Cuidava do cavalo e das demais criações que o seu marido lhe deixara, a
carrocinha, para irem na feira fazer compras, levar os produtos da sua roça e
vende-los. Era uma mulher muito esperta, trabalhadeira mas era doida, muito
agitada, nervosa e de pouca paciência, por qualquer coisinha de nada já xingava
tudo, era desequilibrada mesmo. Quando tomada daquela ira tola até o filho ela
maltratava com tudo o que era nomes indecentes, imorais e pesados e até
praguejava o pobre menino. Por isso que ele era daquele jeito, o xingo é uma
ordem que o xingador dá aos espíritos imundos das trevas de atacarem o xingado.
É o extremo do ódio, da falta de amor ao seu próximo. Muitas pessoas não sabem
disto. A criança perde a presença do seu anjo da guarda. Ele vai embora, ele
volta para o céu e a criança fica desprotegida, a mercê dos demônios. Mãe tem
muita autoridade sobre seus filhos. Verão mais adiante o que a sua madrinha fez
por ele. Ela a sua mãe, até já tinha oferecido o filho para quem o quisesse levá-lo.
Mas ninguém o queria ainda mais depois de saber quem ele era. A vizinhança
ficava escandalizada ao ver a mãe tratar um filho daquela maneira. Imaginem uma
criança que não tem o carinho de sua mãe, parecia que a mulher nem fé em Deus
possuía. O menino era para ela era um estorvo, aqueles nomes pesados e aquele
xingatório que o pequeno recebia lhe atrasava a vida. Um dia estava tão atacada
que ofereceu-o ao demônio, caso este o quisesse levá-lo. Os dias se passaram,
algum tempo depois apareceu em sua casa um homem fumando um cachimbo e montado
em uma mula preta, chegando, apeou e pediu água para ele e para a mula, fazia
muito calor e ele vinha de longa viagem. A mulher o serviu e começou a conversar
com o estranho, até que saíram no assunto do menino rebelde, o seu filho. O
homem dissera haver sabido por terceiros que ela doava o garoto para quem o
quisesse levá-lo e até ao capeta caso ele aparecesse e tivesse disposto a
aguentar as peraltices do moleque, pois já não aguentava mais apesar de ser o
seu filho. O estranho depois de tudo ouvir, respondeu-lhe: Se até agora ninguém
o quis, eu o levo pois lá em casa temos um montes destes e até com qualidades
piores, nós damos jeito nele sim, pode crer. Nunca deixamos escapar nenhum
destes sapecas, a gente campeia eles para todos os lados e não perdemos nenhum.
A palavra da senhora ainda está em pé? Sim, disse a mulher, pode levá-lo agora.
Não quero vê-lo nem mais um minuto em minha frente. O moleque estava de um lado
ouvindo a conversa entre sua mãe e o estranho, ficou triste em saber que iria
embora de sua casa apesar de ser maltratado por sua mãe, duas lágrimas correu
dos seus olhinhos por não saber que destino seria o seu dali em diante, mesmo
ante as lágrimas do filho aquele coração duro daquela mãe desalmada nem sequer
esboçou um gesto de despedida daquele que ela carregara nove meses no ventre e
que deveria tê-lo amado muito. Coração, de pedra, rude, árido, seco, sem vida e
sem amor, sem ao menos imaginar que aquela criança necessitaria de seu amor nem
que fosse por mais um dia. Arrumou rápido as suas roupinhas numa sacola e
despachou-o com aquele homem que ela nem sabia quem era. Engarupando na mula
sumiram no estradão poeirento naquele calor sufocante, que parecia o verão não
ter mais fim. Depois de alguns minutos de viagem chegaram na casa do homem, os
seus familiares eram todos esquisitos, deformados, deficientes de todo jeito,
magros, sujos, feios, fedorentos andavam todos nus, tinham aspecto de animais
felinos e canídeos meio a meio, outros já de chifrinhos e rabos, não tinham o
que comer lá, um calor insuportável não corria nem uma brisa sequer para
desabafar o imenso calor. Uma casa velha caindo as paredes, sujeira ao redor um
lugar terrível só de se olhar. O menino quis correr para voltar, mas foi
impedido pelo homem, na hora de comerem alguma coisa foi-lhe apresentado uma
orelha de defunto deste tamanho, podre, peluda de repunar só de ver aquilo, não
tinha mais nada para se comer além de pedaços de defuntos na mesa. Recusou na
hora! O homem o ameaçou, se não come-la
morrerá de fome ou te cozinharemos naquele tacho de água fervente que estava no
quintal numa trempe de ferro e os demais daqui te jantarão ainda hoje. Trate de
comer a orelha e deixe de teimosia, o menino chorou, suplicou, implorou,
ajoelhou e pediu muito que o levasse embora, o homem pegou um relho deu-lhe
umas lapadas nas costas, ele pegou a tal orelha, cheirou, tocou a língua e
cuspiu, jamais comeria uma coisa fedorenta daquela, passou a noite com fome, o
calor daquele lugar parecia multiplicar cada vez mais. O homem foi viajar e deu
a seguinte ordem: Tens três dias para comer esta orelha. Sim senhor dissera o
garoto. O menino enterrou a orelha lá no monturo de lixo. Antes de viajar, assim que amanheceu o dia ele
perguntou: Já comeste a orelha João? Já sim senhor! Mas o menino não sabia que
a tal orelha falava igual gente. O homem pergunta: Orelha, onde estás? Esta
responde: Estou aqui no monturo enterrada no lixo. O homem esbravejou. vá
comê-la logo seu estrume, senão te afogo naquele tacho de água quente. O garoto
caiu em prantos novamente, no outro dia teve uma ideia, colocou-a num de seus
bolsos. De novo lá vem o homem e pergunta: E agora comeste? Sim senhor, comi!
Orelha onde estás? Aqui no bolso de João. Outra bronca do homem. Deu-lhe mais
um couro que o deixou-o com marcas do chicote. Joãozinho lembrou de sua casa e
de sua madrinha que o queria tanto, sentiu um alívio. Enquanto o menino sofria
lá a sua mãe estava toda feliz, não sentia a menor falta do filho, num dia
destes a madrinha de Joãozinho foi ver a comadre e ele, não o encontrando ficou
aflita pois gostava muito do afilhado. Não vendo o menino perguntou: Comadre,
cadê o Joãozinho? O que a senhora fez dele? Esta lhe contou toda a história. A
comadre virou uma fera ao saber do destino de seu afilhado, onde já se viu uma
coisa destas mulher? Você é maluca? Oferecer seu filho para o capeta? Não foi o
capeta comadre, foi um homem que montava uma mula preta, só que nunca vi ele
por aqui, replicou a mãe do menino. Como é que deste o filho á um estranho, e se este homem for o
capeta? Vou embora daqui e nunca mais será minha comadre. Não pisarei meus pés
aqui na tua casa. Dê um jeito e procure o menino, quero meu afilhado aqui vivo
e são! Não levei ele para mim porque a obrigação de cuidar dele é sua, você é
mãe ou é mandioca? Vou pedir á Nossa Senhora que me dê ele de volta, esteja
onde estiver, saibas tu que a madrinha é a segunda mãe de uma criança. A
comadre caiu em prantos enquanto a madrinha saiu pisando duro, mas com o
coração em oração á Nossa Senhora pelo afilhado. Custe o que custar, quero meu
afilhado comigo. Serei sua mãe enquanto Deus me der vida e saúde. A comadre
ficou triste pela burrice que cometera além de ser um pecado grave. Chorou
muito mas não havia meio de resgatar o menino. Quem é que sabia onde a criança
foi parar, e se já estivesse morta? Logo mais o homem da mula preta apareceu na
casa de Joãozinho e deu notícias do menino dizendo que ele estava muito bem e
tinha enviado lembranças á ela. Pura mentira dele, o menino estava magrinho e
chorando sem parar. Nada lhe consolava! O homem perguntou á ela: Quem é aquela
mulher que esteve aqui falando contigo hoje de manhã? Ao que ela respondeu: É a
minha comadre, a madrinha do menino que o senhor levou! Diabos retrucou o
homem, e furioso acrescentou: Ela está me dando um trabalho danado, quer me
tomar o garoto de qualquer jeito, ela pensa que eu não sei o que ele está
fazendo contra mim. Aquela mulher vestida de branco, que mora lá nas maiores
alturas deste infinito está me intimando a devolver o moleque. Saiu numa
desabalada carreira na mula que era só poeira que levantou, parecia uma fera
acuada, resmungando e se maldizendo em tudo. Foi até a casa da madrinha do
moleque e antes de apear, viu a mulher de joelhos rezando, vendo aquilo virou
em cima do rastro mais furioso ainda. Enquanto isso o Joãozinho, pensava como
escaparia daquela situação para não comer aquela coisa horrível, saiu pelo
terreiro e achou um pedaço de barbante e amarrou a orelha pelo meio e atou-a
contra a sua barriga bem em cima do umbigo amarrando o barbante nas cadeiras,
jogou a camisa por cima e dentro das calças de modo que ninguém via. Lá vinha o
homem furioso, já perguntou-lhe: Tu comeste a orelha seu safado, canalha, vadio
e se não comeste vou estrangular você e metê-lo no tacho de água fervente agora
mesmo. Mas se a comeste és meu para sempre, serás meu amigão. Apavorado o
menino disse: Já comi a orelha senhor! Pode crer! Para ver se era verdade o
monstro perguntou: Orelha, onde você está! Esta responde: Estou aqui na barriga
de João! Agora sim diz o homem, assim é se faz, tem que obedecer seu superior.
Joãozinho ficou aliviado com a resposta do homem, parecia que algo diferente ia
acontecer em sua vida, sentia uma alegria que nem ele sabia de onde vinha. De
repente o homem olhou para a cara do menino e disse-lhe: Estou com nojo de sua
cara, cate suas roupas e me acompanhe, porque aquela sua madrinha não deixa de
me perturbar, quer você lá com ela de qualquer maneira, ainda hoje sem falta!
Você mudou muito depois que sua madrinha deu por sua falta. É uma pena que lhe
bati pouco, era para tu ser sovado por mim de laço até falar inglês, sua
madrinha e aquela mulher vestida de branco atrapalhou todos os meus planos,
nunca pude e nem posso com ela, por ser muito
forte e poderosa, a sua madrinha é devota dela. Chegando lá avise sua
mãe que a qualquer momento irei buscá-la para que fique no seu lugar, você era
meu, e não sendo mais, ela vai ter que ficar no seu lugar, porque a gente aqui
não pode perder tempo. Ela praguejou você, ela também é minha. Aqui é o lugar
das pessoas que vivem xingando e praguejando os outros. Lugar dos bocudos e das
pessoas más. Fique sabendo que aqui é o inferno, viu? Sou o manda chuva, o
chefão, o mandão daqui. Se você
consertar a vida escaparás de mim, e se continuar como era, vou te buscar de
novo e nunca mais sairá daqui, te enforco primeiro e depois te trago. Quero ver
escapar das minhas garras. Dizendo isto trouxe a mula e deu ordem á esta que
derrubasse o menino lá no terreiro de sua madrinha. A mula fez direitinho,
derrubando-o, ainda deu-lhe um coice na cabeça mas não acertou. Joãozinho
chegando correu para os braços de sua madrinha e esta o abençoou de coração, deu-lhe
banho com água benta, jogando suas roupas sujas e imundas fora, deu outras
novas, deu-lhe de comer, estava magrinho de dar dó, arrumou sua caminha. Ela
ficou muito feliz, acabou de criar seu afilhado com o maior mimo, ensinou-lhe a
rezar e ser obediente á madrinha. levava-o á missa fazendo dele um bom menino e
um bom cristão.
"CAUSO" E CONTO ANTIGO QUE TRANSCREVEMOS PARA O
NOSSO BLOGGER.
"COISAS DE CABOCLO DE LUIZÃO-O-CHAVES"-- 20 DE MAIO
DE 2016
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